Crónica de Alexandre Honrado | Fragmentos de discurso

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As minhas leituras de férias não serão muito diferentes das minhas leituras do ano inteiro, até porque me considero em férias durante doze meses, intervalando em certos momentos, como aqueles em que tenho de ir à repartição de finanças explicar porque não posso alimentar mais nem melhor o sistema tributário.

Trouxe comigo – confesso – alguns livros sobre a I Guerra Mundial, relatos na primeira pessoa, e uma das surpresas neles colhida é a falta de intensidade emotiva com que os sentimentos ficaram no papel. Procuro uma resposta: somos todos habitantes dos nossos hábitos. E a circunstância dita a atitude. Numa época de morte e de destruição, arquitetamos as nossas defesas. Como  confessar os sentimentos, se pouco resta para sentir? Afinal morreram mais pessoas por dia no século passado do que no século XXI, somando todos os mortos por causa violenta neste últimos 18 anos – e tantos exemplos de barbárie temos tido!

Cruzo leituras e fontes de inspiração, portanto, agradecendo a dado passo ao Fernando Pinto do Amaral, querido amigo, o ter-me reposto Roland Barthes nas revisitações, e o seu Fragmentos de um Discurso Amoroso, de 1977.

O Fernando ainda fez melhor e sugeriu rever um dos melhores programas televisivos de sempre, o Apostrophes, do Bernard Pivot, coisa para eleitos (para os que gostam de cultura  e os que sabem francês, língua morta para muita gente viva).

Não há desculpas para evitar a leitura de Barthes. Até se pode descarregar o texto em português de um desses sítios da rede – sites da Internet, you know? – em que os piratas se disponibilizam e oferecem como amostras de perfume em certas lojas.

Fui reler Barthes. E pensar com ele sobre os novos fragmentos que o discurso amoroso derrama pelos quatro cantos da vida, quarenta anos volvidos. Os namorados que não namoram. As selfies que são solidão. As agressões físicas entre amantes. A violência no namoro. A violência, enfim, em toda a parte.

A própria definição do que é ou não amoroso. A adulteração do emotivo, do motivo pelo qual devíamos ser emocionais, mais de outras sensações que apenas o afeto pode completar. Sociedade fria, tecnológica, de tablets e IPads e outras diatribes…

Hoje, emoção e cognição parecem ser coisas completamente distintas, talvez porque historicamente, tenham triunfado os paradigmas cartesianos e os positivistas, e a concepção de ser humano é uma coisa linear e por vezes absurda: somos os seres do deve e do haver, do ter e do pagar, do querer e conquistar, do ser e do frustrar, mas cada vez menos do sentir. Até porque exigimos o espetáculo todos os dias e as grandes emoções, do clube, da festa, do clube, da morte, do corpo, da família – e nada disso é afeto ou completude. Sentir, emocionar, apostar no afeto é sair da nova zona de conforto, essa que padroniza, que formata, que nos torna iguais na massa igual.

Em matéria académica, poucos são os autores que se voltaram para as emoções e, se o fazem, concebem-nas de modo segmentado, tratando os circuitos emocionais como eventos à parte e independentes. A emoção chegou mesmo a ser considerada por muitos como “o lado sombrio e nebuloso da natureza humana”. E exibir os sentimentos é qualquer coisa de vergonhoso – é mais fácil dizer I love you do que Eu amo-te e ainda é mais difícil demonstrá-lo.

A afetividade permaneceu muito tempo como periférica no estudo dos processos humanos. Os afetos emergiram, então, como algo que não poderiam tornar-se objeto de estudo científico.

Ainda me lembro de quando escrevi sobre o lado humano de algumas figuras históricas e como foi criticado nessa altura. Felizmente, a partir de outros paradigmas teóricos, a cognição e a emoção passaram a ser entendidas como indissociáveis.

São estes, por hora, os meus fragmentos. Poderei voltar a eles um destes dias, se a emoção assim mo ditar.

Alexandre Honrado

Historiador

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